O PROCESSO DE MORTE
(Leia antes as partes I e II deste texto postadas abaixo)
Frederico Burlamaqui
(fredkareka@hotmail.com)
Acredito hoje que no precipício, à beira do fim,
demonstramos exatamente quem somos. Se somos covardes, fugiremos, ou
abandonaremos quem precisa de nós. Se somos egoístas, buscaremos salvar apenas
a nós mesmos. Se somos medrosos, choraremos feito crianças. Se somos corajosos,
enfrentaremos a destruição encarando-a olho
no olho, impondo medo a ela. Mas se você quer sobreviver a isso, se decidir por
isso, contarei brevemente sobre meu fundo de poço, que é sobre o que estou
falando.
Alguns anos
atrás conheci a droga que mudou completamente minha vida: o crack. Na primeira
vez que usei, senti algo indescritível. Afirmei, inclusive, que nunca mais
queria parar de usar aquilo. Nada mais tinha a mesma importância de antes, minha
família, inclusive minha namorada, embora ainda conseguisse esconder isso por
um tempo. Mais uma vez afirmo que a amava como nunca amei ninguém até hoje, mas
certas coisas são ainda mais fortes, quando se é um cego ignorante...
Dia
1º de janeiro de 2009, ano novo, velhos hábitos. Fui à festa de réveillon no apartamento dos tios de
minha ainda namorada, depois de ter usado muita droga. Fazendo total sentido,
fui vestido de preto. Depois de pouco tempo, fomos embora procurando outra
festa, mas não antes de seu primo ter me chamado para sair contra a vontade da
esposa (por que será que ele chamou justamente a mim?), pois haviam brigado. A
nuvem negra atrai maldade. Numa tentativa frustrada de demonstrar bom senso,
pedi a ela que dirigisse, apenas para tentar tomar o volante de volta em
seguida. A tratei como não se deve nem a um animal, a agredi verbal e
fisicamente, fazendo jus a como me sentia, um monstro que tinha de impor dor
aos outros, talvez até para afastá-los da minha própria, que nessa época, ainda
era apenas quase insuportável.
Não
sei, honestamente, se o que fiz será perdoado de fato, pois não sinto que o fui
(isso não está ao meu alcance), nem se terei o que acho justo. O que sei, é que
chegou ao fim um relacionamento de cinco anos que certamente ficará marcado por
todo o sempre, porque esse é meu desejo. Sofri uma dor que não desejo ao
condenado no corredor da morte, um arrependimento profundo em relação ao que
minhas escolhas levaram. Mas o que um cego, um tolo ignorante poderia fazer? Essa
dor foi apenas uma de muitas que ainda viriam. Um dos grandes problemas que as
drogas trazem é que as pessoas que abrem mão do dependente químico sofrem por
um tempo e depois “resolvem” seus sentimentos em relação a ele, mas o seu
sofrimento (o dele) continua, até que algo mude. Para mostrar isso, tomo
emprestadas as palavras de um texto bem conhecido meu: “(...) um adicto [aqui
entenderemos como dependente químico, mais à frente explico em detalhes] que
não queira parar de usar não vai parar de usar. Pode ser analisado,
aconselhado, persuadido, pode se rezar por ele, pode ser ameaçado, surrado ou
trancado, mas não irá parar até que queira parar de usar”. Então refaço a
pergunta: o que poderia fazer, já que não tinha consciência espiritual dessa
opção?
No mês de maio desse mesmo ano, meu pai, aos oitenta
e nove anos, com a saúde extremamente debilitada, é internado na UTI do
hospital ITACOR. Um dia antes de sua ida, sofreu mais uma de diversas quedas.
Eu estava usando drogas no quintal de minha casa e ouvi de lá o som causado por
isso, o que me fez sentir uma raiva extrema, já que tinha que parar de usar
para ir lá ajudar. Por isso, diversas vezes desejei que ele morresse logo, aí
eu teria tranquilidade pra usar quando quisesse. Não me arrependo de expor isso,
porque a pessoa que quis isso, essa pessoa, não mais vive entre nós. Mas
chegando ao quarto, meu sentimento mudou
– ainda havia esperança pra mim, ainda havia algo de bom dentro de meu ser. O
pus na cama e vi que já não tinha mais lucidez, mesmo assim dei um beijo em sua
testa, ele olhou pra mim surpreso e sorrindo, como se agradecesse pelo gesto de
carinho. Nunca vou esquecer aquele momento. Depois desse breve instante, disse
a ele em um tom surpreendentemente amável: “pai, o senhor deve ir pro hospital”.
Ele respondeu: “eu vou, eu vou”. Foi a última vez que falei com meu pai.
No dia doze de abril de 2009, após quase um mês de
internação, por volta das 20h, o telefone tocou. Um gigante havia tombado.
Tudo o que sou hoje, se tenho destreza com o conhecimento
e habilidade com o escrever, dentre muitas outras coisas, herdei de meu pai. Um
homem de extremo e notório saber, que discorria com impressionante propriedade
sobre qualquer tema exposto a ele. Admirador da chuva, adorava ir para a
varanda e ficar apenas olhando, tranquilamente e quase sempre em silêncio, a
água que caía dos céus.
No
dia após sua morte, estava usando drogas novamente.
O meu uso estava tão frequente e tão intenso, que
virou um ciclo vicioso: acordava depois de vários dias de autodestruição,
arrependido, amargurado, sentindo um vazio enlouquecedor que precisava ser
preenchido por mais drogas. Fazendo-me de vítima, tratava prontamente de fazer
o que fazia muito bem: criar discórdia e dor em casa, apenas para justificar
meu uso novamente, para alimentar minha raiva. Aí entra mais uma personagem
nesse drama, mas não menos importante: minha mãe, que foi praticamente a única
a restar na guerra desigual, desleal e injusta que as drogas proporcionam. Ela
passou a ser meu principal alvo de ódio, e tudo girava em torno dela. Brigas
por causa de dinheiro, discursões violentas e tentativas frustradas de me fazer
mudar reinavam naquela casa, regado a muito uso. Eu pressentia que algo estava
pra mudar, ou mesmo buscava isso.
Resolvi me entregar de completo a meu estilo de vida:
abandonei o emprego, a faculdade, ficava ligando para minha ex-namorada em auto
piedade apenas para alimentar mais e mais a minha dor, e a dela. Os últimos
amigos me abandonaram, me dizendo coisas muito fortes. Andava na maior parte do
tempo entre favelas e motéis para usar lá, sempre sozinho.
Pela primeira vez, senti que precisava de um tempo.
Ouvi falar de um local que oferecia tratamento a dependentes químicos, e
resolvi que queria ir para lá. Depois de um mês de espera, mas relutando muito,
dei entrada em minha primeira internação.
Não me adaptei ao lugar, e apenas dezoito dias
depois, não aguentei e pedi desesperadamente para ir embora, alegando que
“tinha aprendido a lição”, uma completa desonestidade, porque no fundo, queria
mesmo era voltar a usar. Mas essa internação não foi em vão, pois conheci o
programa que abriria meus olhos no futuro.
Saí, e não demorei muito tempo limpo (uma nova
expressão que aprendi lá). Aprendi também que eu tinha doença incurável, progressiva
e com fins fatais se não for tratada (sim, é uma doença comportamental e se
chama adicção; do latim, adictum, escravo, no contexto, escravo de si mesmo), mas apenas saber
disso é pouquíssimo frente a dimensão que essa doença alcança. Haviam me
contado que a adicção é como uma vela: quando estamos na ativa, acendemos a
vela, se entramos em recuperação, apenas apagamos a vela, não ganhamos uma
nova. E eu pude confirmar isso na prática.
Não durei dois meses de pé. E obviamente, meu uso
voltou mais intenso do que nunca, e minha doença avançou a um novo patamar:
onde antes minha busca por destruição almejava minha casa, agora se expandia
para toda minha família. Não havia hora para ligar para algum tio, avó ou
qualquer outro para pedir dinheiro contando histórias mais absurdas possíveis.
Não conseguindo com eles, ia pedir fiado a traficantes, o que passou a ser um
sério problema, porque dever a traficante é um dos caminhos mais rápidos para a
morte no mundo da adicção. Então, os denunciava à polícia para que fossem
presos e não tivessem como me cobrar. Isso é um perigo maior ainda, porque não
há perdão para delatores nesse mundo...
Já tive arma apontada na cara por causa desses
deslizes, mas meu coração nem mesmo acelerou nem tremi um pouco sequer, não por
coragem, mas por minha vida já não ter valor nenhum para mim. Acredito que um
fim a ela era inclusive o que buscava, pois não tinha coragem de acabar assim
com minha própria “vida”. Meus olhos viram gente ser morta bem na minha frente
por causa de dez reais. Meus olhos viram meninas de treze anos se prostituindo
e tendo que dar o dinheiro a gigolô, sob ameaça de espancamento. Sempre que
conseguia o carro de minha casa, o deixava empenhado em bocas-de-fumo, sempre
com minha mãe indo buscar. Houve vezes que ela tomou o carro expulsando os
traficantes de dentro dele, e houve vez que em empenhei o carro de meu tio,
outro que não pode deixar de ser citado pelo apoio dado.
Não lembro com exatidão da cronologia dos fatos dessa
época. Posso apenas afirmar que a certa altura dos eventos, me sentia como se
fosse uma nuvem negra, que tinha como único propósito destruir tudo o que me
cercasse, e que, de fato, precisava de um fim. Com a polícia cada vez mais em
meu encalço, devendo dezenas de traficantes, ameaçado de morte, com a família
desistindo de mim, sem amigos, sem amor próprio, quebrado física, mental e
espiritualmente, sem vida. Qualquer que fosse o desfecho, eu o queria. Mesmo
hoje, tenho dificuldade de recordar o que exatamente aconteceu. O que sei com
toda certeza, é que no dia 2 de fevereiro de 2010, fui forçado e levado a outra
cidade em um outro estado para dar entrada em minha segunda internação. Quando hoje
me perguntam se eu queria ir, respondo que eu sabia que precisava, mas minha
doença não queria.
Nesse dia terminava uma vida.
E chorei me despedindo dela.