segunda-feira, 3 de outubro de 2011

“Non est maior defectum quan ignoratio” Parte III


O PROCESSO DE MORTE
(Leia antes as partes I e II deste texto postadas abaixo) 

Frederico Burlamaqui
(fredkareka@hotmail.com)
                Acredito hoje que no precipício, à beira do fim, demonstramos exatamente quem somos. Se somos covardes, fugiremos, ou abandonaremos quem precisa de nós. Se somos egoístas, buscaremos salvar apenas a nós mesmos. Se somos medrosos, choraremos feito crianças. Se somos corajosos, enfrentaremos a destruição  encarando-a olho no olho, impondo medo a ela. Mas se você quer sobreviver a isso, se decidir por isso, contarei brevemente sobre meu fundo de poço, que é sobre o que estou falando.
                 Alguns anos atrás conheci a droga que mudou completamente minha vida: o crack. Na primeira vez que usei, senti algo indescritível. Afirmei, inclusive, que nunca mais queria parar de usar aquilo. Nada mais tinha a mesma importância de antes, minha família, inclusive minha namorada, embora ainda conseguisse esconder isso por um tempo. Mais uma vez afirmo que a amava como nunca amei ninguém até hoje, mas certas coisas são ainda mais fortes, quando se é um cego ignorante...
Dia 1º de janeiro de 2009, ano novo, velhos hábitos. Fui à festa de réveillon no apartamento dos tios de minha ainda namorada, depois de ter usado muita droga. Fazendo total sentido, fui vestido de preto. Depois de pouco tempo, fomos embora procurando outra festa, mas não antes de seu primo ter me chamado para sair contra a vontade da esposa (por que será que ele chamou justamente a mim?), pois haviam brigado. A nuvem negra atrai maldade. Numa tentativa frustrada de demonstrar bom senso, pedi a ela que dirigisse, apenas para tentar tomar o volante de volta em seguida. A tratei como não se deve nem a um animal, a agredi verbal e fisicamente, fazendo jus a como me sentia, um monstro que tinha de impor dor aos outros, talvez até para afastá-los da minha própria, que nessa época, ainda era apenas quase insuportável.
Não sei, honestamente, se o que fiz será perdoado de fato, pois não sinto que o fui (isso não está ao meu alcance), nem se terei o que acho justo. O que sei, é que chegou ao fim um relacionamento de cinco anos que certamente ficará marcado por todo o sempre, porque esse é meu desejo. Sofri uma dor que não desejo ao condenado no corredor da morte, um arrependimento profundo em relação ao que minhas escolhas levaram. Mas o que um cego, um tolo ignorante poderia fazer? Essa dor foi apenas uma de muitas que ainda viriam. Um dos grandes problemas que as drogas trazem é que as pessoas que abrem mão do dependente químico sofrem por um tempo e depois “resolvem” seus sentimentos em relação a ele, mas o seu sofrimento (o dele) continua, até que algo mude. Para mostrar isso, tomo emprestadas as palavras de um texto bem conhecido meu: “(...) um adicto [aqui entenderemos como dependente químico, mais à frente explico em detalhes] que não queira parar de usar não vai parar de usar. Pode ser analisado, aconselhado, persuadido, pode se rezar por ele, pode ser ameaçado, surrado ou trancado, mas não irá parar até que queira parar de usar”. Então refaço a pergunta: o que poderia fazer, já que não tinha consciência espiritual dessa opção?
                No mês de maio desse mesmo ano, meu pai, aos oitenta e nove anos, com a saúde extremamente debilitada, é internado na UTI do hospital ITACOR. Um dia antes de sua ida, sofreu mais uma de diversas quedas. Eu estava usando drogas no quintal de minha casa e ouvi de lá o som causado por isso, o que me fez sentir uma raiva extrema, já que tinha que parar de usar para ir lá ajudar. Por isso, diversas vezes desejei que ele morresse logo, aí eu teria tranquilidade pra usar quando quisesse. Não me arrependo de expor isso, porque a pessoa que quis isso, essa pessoa, não mais vive entre nós. Mas chegando ao   quarto, meu sentimento mudou – ainda havia esperança pra mim, ainda havia algo de bom dentro de meu ser. O pus na cama e vi que já não tinha mais lucidez, mesmo assim dei um beijo em sua testa, ele olhou pra mim surpreso e sorrindo, como se agradecesse pelo gesto de carinho. Nunca vou esquecer aquele momento. Depois desse breve instante, disse a ele em um tom surpreendentemente amável: “pai, o senhor deve ir pro hospital”. Ele respondeu: “eu vou, eu vou”. Foi a última vez que falei com meu pai.
                No dia doze de abril de 2009, após quase um mês de internação, por volta das 20h, o telefone tocou. Um gigante havia tombado.
                Tudo o que sou hoje, se tenho destreza com o conhecimento e habilidade com o escrever, dentre muitas outras coisas, herdei de meu pai. Um homem de extremo e notório saber, que discorria com impressionante propriedade sobre qualquer tema exposto a ele. Admirador da chuva, adorava ir para a varanda e ficar apenas olhando, tranquilamente e quase sempre em silêncio, a água que caía dos céus.
No dia após sua morte, estava usando drogas novamente.
                O meu uso estava tão frequente e tão intenso, que virou um ciclo vicioso: acordava depois de vários dias de autodestruição, arrependido, amargurado, sentindo um vazio enlouquecedor que precisava ser preenchido por mais drogas. Fazendo-me de vítima, tratava prontamente de fazer o que fazia muito bem: criar discórdia e dor em casa, apenas para justificar meu uso novamente, para alimentar minha raiva. Aí entra mais uma personagem nesse drama, mas não menos importante: minha mãe, que foi praticamente a única a restar na guerra desigual, desleal e injusta que as drogas proporcionam. Ela passou a ser meu principal alvo de ódio, e tudo girava em torno dela. Brigas por causa de dinheiro, discursões violentas e tentativas frustradas de me fazer mudar reinavam naquela casa, regado a muito uso. Eu pressentia que algo estava pra mudar, ou mesmo buscava isso.
                Resolvi me entregar de completo a meu estilo de vida: abandonei o emprego, a faculdade, ficava ligando para minha ex-namorada em auto piedade apenas para alimentar mais e mais a minha dor, e a dela. Os últimos amigos me abandonaram, me dizendo coisas muito fortes. Andava na maior parte do tempo entre favelas e motéis para usar lá, sempre sozinho.
                Pela primeira vez, senti que precisava de um tempo. Ouvi falar de um local que oferecia tratamento a dependentes químicos, e resolvi que queria ir para lá. Depois de um mês de espera, mas relutando muito, dei entrada em minha primeira internação.
                Não me adaptei ao lugar, e apenas dezoito dias depois, não aguentei e pedi desesperadamente para ir embora, alegando que “tinha aprendido a lição”, uma completa desonestidade, porque no fundo, queria mesmo era voltar a usar. Mas essa internação não foi em vão, pois conheci o programa que abriria meus olhos no futuro.
                Saí, e não demorei muito tempo limpo (uma nova expressão que aprendi lá). Aprendi também que eu tinha doença incurável, progressiva e com fins fatais se não for tratada (sim, é uma doença comportamental e se chama adicção; do latim, adictum, escravo, no contexto, escravo de si mesmo), mas apenas saber disso é pouquíssimo frente a dimensão que essa doença alcança. Haviam me contado que a adicção é como uma vela: quando estamos na ativa, acendemos a vela, se entramos em recuperação, apenas apagamos a vela, não ganhamos uma nova. E eu pude confirmar isso na prática.
                Não durei dois meses de pé. E obviamente, meu uso voltou mais intenso do que nunca, e minha doença avançou a um novo patamar: onde antes minha busca por destruição almejava minha casa, agora se expandia para toda minha família. Não havia hora para ligar para algum tio, avó ou qualquer outro para pedir dinheiro contando histórias mais absurdas possíveis. Não conseguindo com eles, ia pedir fiado a traficantes, o que passou a ser um sério problema, porque dever a traficante é um dos caminhos mais rápidos para a morte no mundo da adicção. Então, os denunciava à polícia para que fossem presos e não tivessem como me cobrar. Isso é um perigo maior ainda, porque não há perdão para delatores nesse mundo...
                Já tive arma apontada na cara por causa desses deslizes, mas meu coração nem mesmo acelerou nem tremi um pouco sequer, não por coragem, mas por minha vida já não ter valor nenhum para mim. Acredito que um fim a ela era inclusive o que buscava, pois não tinha coragem de acabar assim com minha própria “vida”. Meus olhos viram gente ser morta bem na minha frente por causa de dez reais. Meus olhos viram meninas de treze anos se prostituindo e tendo que dar o dinheiro a gigolô, sob ameaça de espancamento. Sempre que conseguia o carro de minha casa, o deixava empenhado em bocas-de-fumo, sempre com minha mãe indo buscar. Houve vezes que ela tomou o carro expulsando os traficantes de dentro dele, e houve vez que em empenhei o carro de meu tio, outro que não pode deixar de ser citado pelo apoio dado.
                Não lembro com exatidão da cronologia dos fatos dessa época. Posso apenas afirmar que a certa altura dos eventos, me sentia como se fosse uma nuvem negra, que tinha como único propósito destruir tudo o que me cercasse, e que, de fato, precisava de um fim. Com a polícia cada vez mais em meu encalço, devendo dezenas de traficantes, ameaçado de morte, com a família desistindo de mim, sem amigos, sem amor próprio, quebrado física, mental e espiritualmente, sem vida. Qualquer que fosse o desfecho, eu o queria. Mesmo hoje, tenho dificuldade de recordar o que exatamente aconteceu. O que sei com toda certeza, é que no dia 2 de fevereiro de 2010, fui forçado e levado a outra cidade em um outro estado para dar entrada em minha segunda internação. Quando hoje me perguntam se eu queria ir, respondo que eu sabia que precisava, mas minha doença não queria.
                Nesse dia terminava uma vida.
                E chorei me despedindo dela.

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