terça-feira, 25 de outubro de 2011

Pessoas

     Quando era criança, tinha a sensação de eternidade e achava que nada iria mudar, que as pessoas não envelheceriam e que não morreriam. Aos quatro anos, meu grande ídolo, meu avô, morreu. Descobri a transitoriedade de uma forma muito absurda.
     Aos poucos fui entendendo que as pessoas envelhecem; que elas passam por nossas vidas. Algumas passam de forma tão meteórica que mal conseguimos lembrar delas; outras, demoram um pouco mais e há ainda as que nos marcam.
     Aprendi muitas coisas com as pessoas que passaram por minha vida. Coisas boas e ruins. Fui mal com umas, injusto com outras, arrogante com umas tantas e tive boas ações também para com algumas.  Cada uma delas me ensinou algo de bom e, mesmo as que eu não gosto me ensinam a ter paciência e aceitação, pois as coisas não são bem como desejaria: simplesmente elas são.
     Meus filhos me mostram que a felicidade está em ser simples; com meus alunos, entendo que sempre tenho algo a aprender. Nem sempre vou agradar todo mundo. E daí? Quem foi que disse que estamos nesta vida para isto? Não tenho que me entristecer se há pessoas que não simpatizam comigo, pois há tantas outras que me amam e estas, junto com as que estão hoje comigo, são verdadeiramente mais importantes para mim. Quanto ao resto, bem, quem foi que disse que se vive de restos?
     So por hoje me permito ser feliz.

quinta-feira, 13 de outubro de 2011

A fé sem ação é morta

     Tudo, em recuperação, parte do princípio de querermos. Há uma grande diferença de como a sociedade olha para nós, dependentes químicos, para o que realmente é o problema da dependência. Somos vistos como "irrecuperáveis", "vagabundos", "irresponsáveis" e outros tantos adjetivos. De fato, fomos nós, por nossas ações, que criamos tais esteriótipos nas pessoas sobre nossa condição. Portanto, compete apenas a nós mesmos desfazermos isto.
     Sei que recuperação não é fácil. Em novembro agora farei 3 anos de "limpo". Nesta tragetória, enfrentei e enfrento muitos problemas e obstáculos. É normal. A vida é assim mesmo difícil e, somando-se às problemáticas geradas pela adicção, as dificuldades aumentam. Mas, como comecei este texto, tudo parte do princípio de querermos. Se não é fácil, não é impossível.
     Percebo que há muito em mim a ser trabalhado, como em qualquer pessoa. A sociedade tem uma mania de ver apenas os defeitos do adicto. Tenho que ser vigilante para, acima de tudo, não recair. Uma recaída é algo horrível e bastante dolorosa para nós e nossa família. Não pretendo ser perfeito ou modelo para ser seguido, apenas ficar limpo por hoje. O amanhã pertence a Deus.

terça-feira, 11 de outubro de 2011

“Non est maior defectum quan ignoratio” Parte VII


FINALMENTE, VIDA!



(Leia antes as partes I a VI deste texto postadas abaixo) 


Frederico Burlamaqui
(fredkareka@hotmail.com)

                Reconheço, e aqui me retrato, que poderia ter explanado melhor sobre a adicção e ao tratamento, ou melhor, o renascimento. Prefiro essa denominação porque curiosamente, durou nove meses (fui além dos seis sugeridos), em um lugar como nome bem sugestivo (Instituto Volta à Vida), em que senti dor, onde aprendi coisas que nunca tive no passado como amizade, amor próprio, respeito, gratidão, dignidade, autoconhecimento, paz. Coisas que usufruo hoje em minha nova maneira de viver. Nunca esquecerei os bons nem os tristes momentos que passei, muito menos das pessoas que estiveram comigo nessa caminhada. Em nenhum momento me senti sozinho ou com medo do fracasso, graças à ajuda incondicional tanto de minha família de sangue quanto de minha nova família, que me encorajaram a sempre seguir em frente sem vacilar.  Afirmo sem dúvida alguma que sou muito grato e feliz. Não quer dizer em absoluto que não tenho dificuldades, mas não as encaro assim: penso ao invés disso que tenho oportunidades e desafios a superar, e muito a aprender e crescer.

O QUE SE PODE CONCLUIR
                 A inabilidade de lidarmos com nossos sentimentos e com nós mesmos, é um dos maiores obstáculos que nos impomos, nos deixando levar pelo pior defeito na minha visão: a ignorância. Posso concluir de minha experiência. Somos nosso único inimigo. Quando nos dizem a verdade, nos sentimos mal porque faz sentido. Quando afirmamos que não perdoamos ao outro e nem a nós mesmos, geramos uma onda de negatividade que nos faz regredir. Quando dizemos que o melhor é esquecermos o passado, na verdade, estamos buscando fugir dele, porque o tememos, e quando afirmamos que o passado está resolvido, basta observar nossa reação quanto a isso: se nos causa dor, é porque estamos enganados a esse respeito: quem perdoa a si e aos outros não sente dor. Nunca podemos alegar falta de tempo para mudar, o momento é agora. Não podemos permitir que a ignorância impere em nossas vidas. Devemos buscar uma visão clara dos fatos. Devemos buscar sabedoria.
                Hoje me dizem que meu passado deve ser esquecido, mas gentilmente discordo. Não me causa dor alguma olhar para trás, pois foi meu passado que me trouxe até aqui. Busco, na realidade, não esquecê-lo, pois sempre aprendo mais analisando e usando-o como referência para que não cometa certos erros novamente. Essa é minha maneira de encarar os fatos. E você, como enxerga a si e como lida com suas dificuldades? O que superou até hoje e o que aprendeu com isso?

MAIS SERÁ REVELADO
                Ainda há muito mais para ser exposto, mas honestamente, é um assunto tão vasto que necessito de muitos outros textos para esclarecer melhor a adicção e a meus pontos de vista. Creio que pude ao menos dar uma ideia do queria mostrar. Não tive em absoluto a intenção de culpar alguém pelo que me aconteceu ou deixou de acontecer, por isso mesmo busquei falar sobre mim. Não sou o detentor da verdade: você tem total liberdade de discordar ou de acrescentar algo dentre tudo o que expus. Em momento algum busquei me colocar como vítima, nem tampouco como herói. Não sou o gigante dos meus sonhos nem mesmo o demônio de meus pesadelos. Nunca tive a intenção de machucar ninguém. Não me tornei um ser perfeito, longe disso. Sou um ser humano como você, falho, que erro e que acerto, mas errando, busco aprender com meus erros, e busco repará-los sempre que possível. Agradeço aos que me encorajaram a escrever a você e aos que me viraram as costas. Agradeço aos que não acreditam em mim, e principalmente, agradeço aos que torcem e crescem comigo.
 Assumo que nada do que fiz pode ser modificado, mas há coisas que posso reparar e ajudar e ser ajudado a resolver, e desejo sinceramente poder fazer isso de alguma forma. Tenho bastante esperança e energia para que aconteça. Busco ter paciência e sabedoria para que quando esse momento chegar, o faça da melhor maneira. No mais, agradeço profundamente por ter lido esse texto até o fim, e sinceramente, espero ter ajudado de alguma maneira, porque você me ajuda muito mais do que pode imaginar!


“O fruto de um trabalho de amor atinge sua plenitude na colheita, e esta chega sempre no tempo certo”.                                                                                                               



“Non est maior defectum quan ignoratio” Parte VI

AS LIÇÕES PARA O RENASCIMENTO



(Leia antes as partes I, II, III, IV e V deste texto postadas abaixo) 


Frederico Burlamaqui
(fredkareka@hotmail.com)

                Aqui procurarei de maneira razoável, devido à abrangência do assunto, demonstrar o que aprendi sobre mim, sobre minha doença e sobre meus comportamentos e maneiras de encarar a vida no passado.
                Essencialmente, adictos têm características em comum, a que chamamos defeitos de caráter. São desonestos, manipuladores, compulsivos, obsessivos, sempre buscam prazer imediato, rebeldes, imaturos, se sentem vítimas, são grandiosos, egocêntricos, desleixados, procrastinadores, medrosos, beligerantes, têm extrema baixa autoestima, sentem uma necessidade imensa de controlar, não se aceitam e por consequência os outros, tendem ao isolamento, são mestres na conversa fiada (promessas irreais). Estes são apenas poucos, acredite, dos defeitos de caráter presentes em cada um de nós adictos.
                O primeiro passo é definir e identificar cada um dos defeitos de caráter. Onde antes não sabíamos por que furtávamos, por exemplo, encontramos a resposta: porque somos desonestos (o que se classifica no mesmo nível da mentira e da manipulação, por exemplo). Observe que os defeitos estão interligados. Mais um exemplo: se busco a aceitação, a aprovação dos outros, é basicamente porque não aceito e não sei lidar com minha baixa autoestima, o que curiosamente pode externar-se como grandiosidade. São infinitas as possibilidades de interligação entre os defeitos, acredito que pôde perceber. Importante mencionar: adictos não são pessoas necessariamente ruins ou más. Na verdade, são extremamente inteligentes e perspicazes, se conseguem trabalhar seus lados negativos e permitem que seu lado bom prospere.
                Conhecer os porquês é apenas pequena parte do processo. O mais complexo, creio, é pôr as mudanças em prática. São anos e anos de comportamentos distorcidos arraigados. Seis meses, que é o sugerido onde estive em tratamento, é muito pouco tempo para mudar completamente. Devemos buscar constantemente ir contra nossa natureza adictiva, e fazer o que definimos como “movimento contrário”, ou seja, se quero procrastinar, farei de imediato; se meu desejo é mentir, direi a verdade; se quero guardar rancor, para fazer mais um inimigo, irei falar sobre meus sentimentos para resolvê-los; se quero me isolar, buscarei companhia. Sempre procurarei falar de mim, assumindo responsabilidade. Isso é apenas um aspecto da recuperação, mas me estenderia à exaustão explanando os demais. A ideia é que deve ser uma busca incessante e destemida, até começarmos a automatizar e incorporar esses novos comportamentos. Requer coragem, paciência, boa vontade e humildade para reconhecer que se precisa de ajuda nesse processo. Demanda uma busca espiritual sincera e honesta, do contrário, não seremos bem-sucedidos.
                Você pode estar se perguntando: “mas e as drogas, onde se enquadram?” Elas sempre estiveram presentes em tudo o que foi mostrado até agora. São todos esses comportamentos que levam o adicto a usar. Todos estes defeitos fazem com que um vazio gigantesco resida no nosso interior, um vazio tamanho que precisa ser preenchido por alguma coisa, no caso as drogas, mas pode ser qualquer coisa: sexo, comida, jogos, furto, medicamentos, enfim. As drogas não são o maior inimigo do adicto, por incrível que pareça, são os seus padrões de comportamento e suas maneiras de pensar. As drogas são apenas uma consequência, a ponta do iceberg, a cereja do bolo.
                Note que sendo assim, muitas pessoas têm comportamentos aditivos, mas não usam drogas. O lado bom é que qualquer pessoa pode pôr essas mudanças em ação. Tenho plena convicção que você conhece pelo menos uma pessoa assim. O que me entristece é o fato de não terem a mesma boa sorte que eu, de ir tão fundo para precisar enxergar isso. É isso mesmo: sou extremamente grato por ter passado por tudo isso, porque do contrário, talvez ainda vivesse na escuridão.

quarta-feira, 5 de outubro de 2011

“Non est maior defectum quan ignoratio” Parte V


A GESTAÇÃO DE UMA NOVA VIDA
(Leia antes as partes I, II, III e IV deste texto postadas abaixo) 

Frederico Burlamaqui
(fredkareka@hotmail.com)



AS LIÇÕES PARA O RENASCIMENTO
                Aqui procurarei de maneira razoável, devido à abrangência do assunto, demonstrar o que aprendi sobre mim, sobre minha doença e sobre meus comportamentos e maneiras de encarar a vida no passado.
                Essencialmente, adictos têm características em comum, a que chamamos defeitos de caráter. São desonestos, manipuladores, compulsivos, obsessivos, sempre buscam prazer imediato, rebeldes, imaturos, se sentem vítimas, são grandiosos, egocêntricos, desleixados, procrastinadores, medrosos, beligerantes, têm extrema baixa autoestima, sentem uma necessidade imensa de controlar, não se aceitam e por consequência os outros, tendem ao isolamento, são mestres na conversa fiada (promessas irreais). Estes são apenas poucos, acredite, dos defeitos de caráter presentes em cada um de nós adictos.
                O primeiro passo é definir e identificar cada um dos defeitos de caráter. Onde antes não sabíamos por que furtávamos, por exemplo, encontramos a resposta: porque somos desonestos (o que se classifica no mesmo nível da mentira e da manipulação, por exemplo). Observe que os defeitos estão interligados. Mais um exemplo: se busco a aceitação, a aprovação dos outros, é basicamente porque não aceito e não sei lidar com minha baixa autoestima, o que curiosamente pode externar-se como grandiosidade. São infinitas as possibilidades de interligação entre os defeitos, acredito que pôde perceber. Importante mencionar: adictos não são pessoas necessariamente ruins ou más. Na verdade, são extremamente inteligentes e perspicazes, se conseguem trabalhar seus lados negativos e permitem que seu lado bom prospere.
                Conhecer os porquês é apenas pequena parte do processo. O mais complexo, creio, é pôr as mudanças em prática. São anos e anos de comportamentos distorcidos arraigados. Seis meses, que é o sugerido onde estive em tratamento, é muito pouco tempo para mudar completamente. Devemos buscar constantemente ir contra nossa natureza adictiva, e fazer o que definimos como “movimento contrário”, ou seja, se quero procrastinar, farei de imediato; se meu desejo é mentir, direi a verdade; se quero guardar rancor, para fazer mais um inimigo, irei falar sobre meus sentimentos para resolvê-los; se quero me isolar, buscarei companhia. Sempre procurarei falar de mim, assumindo responsabilidade. Isso é apenas um aspecto da recuperação, mas me estenderia à exaustão explanando os demais. A ideia é que deve ser uma busca incessante e destemida, até começarmos a automatizar e incorporar esses novos comportamentos. Requer coragem, paciência, boa vontade e humildade para reconhecer que se precisa de ajuda nesse processo. Demanda uma busca espiritual sincera e honesta, do contrário, não seremos bem-sucedidos.
                Você pode estar se perguntando: “mas e as drogas, onde se enquadram?” Elas sempre estiveram presentes em tudo o que foi mostrado até agora. São todos esses comportamentos que levam o adicto a usar. Todos estes defeitos fazem com que um vazio gigantesco resida no nosso interior, um vazio tamanho que precisa ser preenchido por alguma coisa, no caso as drogas, mas pode ser qualquer coisa: sexo, comida, jogos, furto, medicamentos, enfim. As drogas não são o maior inimigo do adicto, por incrível que pareça, são os seus padrões de comportamento e suas maneiras de pensar. As drogas são apenas uma consequência, a ponta do iceberg, a cereja do bolo.
                Note que sendo assim, muitas pessoas têm comportamentos aditivos, mas não usam drogas. O lado bom é que qualquer pessoa pode pôr essas mudanças em ação. Tenho plena convicção que você conhece pelo menos uma pessoa assim. O que me entristece é o fato de não terem a mesma boa sorte que eu, de ir tão fundo para precisar enxergar isso. É isso mesmo: sou extremamente grato por ter passado por tudo isso, porque do contrário, talvez ainda vivesse na escuridão.

“Non est maior defectum quan ignoratio” Parte IV


A GESTAÇÃO DE UMA NOVA VIDA
(Leia antes as partes I, II e III deste texto postadas abaixo) 
 
Frederico Burlamaqui
(fredkareka@hotmail.com)

                É curiosa a maneira como fui recebido. Depois de estar acostumado a constantemente tratar e ser tratado com hostilidade fui acolhido com abraços e boas-vindas, o que me causou estranheza. Pensava que queriam alguma coisa de mim, desconfiando. Não podia acreditar como alguém como eu pudesse ser tratado com cordialidade – algo tinha de estar errado, ainda mais por aquelas pessoas com aspecto saudável e sempre sorrindo me dizendo que também tinham usado muita droga e por muito tempo, alguns até mais tempo que eu. Não, eu não engoliria essa assim tão fácil. Senti uma desconfiança ainda maior quando fui apresentado no refeitório para os outros cerca de sessenta e cinco residentes (preferimos ser chamados assim ao invés de internos) sob uma calorosa salva de palmas. Mas nesse momento, senti algo mais além de desconfiança: senti que estava realmente entre pessoas como eu. Pelos olhares, reparando melhor, dava para perceber isso. ”Adicto ‘saca’ adicto”, como dizemos. Carregaram minhas coisas para meu quarto, e quando fui arrumá-lo, sozinho, desabei em pranto: naquele momento, tive consciência do quadro geral.
Não pretendo entrar em detalhes sobre como é um tratamento para adictos, mas posso garantir que não é como muitos pensam. Não é um ambiente triste, com pessoas presas ou se lamentando, pelo contrário, é um clima que alterna entre o calmo e o alegre. Mas não acho assertivo fazer um julgamento de valor, dizendo se é bom ou ruim estar internado, pois como dizemos: “uma clínica pode ser o céu ou o inferno, depende de como se encara”. Sei que para mim, escolhi que fosse meu céu – qualquer lugar era melhor do que onde eu estava.

segunda-feira, 3 de outubro de 2011

“Non est maior defectum quan ignoratio” Parte III


O PROCESSO DE MORTE
(Leia antes as partes I e II deste texto postadas abaixo) 

Frederico Burlamaqui
(fredkareka@hotmail.com)
                Acredito hoje que no precipício, à beira do fim, demonstramos exatamente quem somos. Se somos covardes, fugiremos, ou abandonaremos quem precisa de nós. Se somos egoístas, buscaremos salvar apenas a nós mesmos. Se somos medrosos, choraremos feito crianças. Se somos corajosos, enfrentaremos a destruição  encarando-a olho no olho, impondo medo a ela. Mas se você quer sobreviver a isso, se decidir por isso, contarei brevemente sobre meu fundo de poço, que é sobre o que estou falando.
                 Alguns anos atrás conheci a droga que mudou completamente minha vida: o crack. Na primeira vez que usei, senti algo indescritível. Afirmei, inclusive, que nunca mais queria parar de usar aquilo. Nada mais tinha a mesma importância de antes, minha família, inclusive minha namorada, embora ainda conseguisse esconder isso por um tempo. Mais uma vez afirmo que a amava como nunca amei ninguém até hoje, mas certas coisas são ainda mais fortes, quando se é um cego ignorante...
Dia 1º de janeiro de 2009, ano novo, velhos hábitos. Fui à festa de réveillon no apartamento dos tios de minha ainda namorada, depois de ter usado muita droga. Fazendo total sentido, fui vestido de preto. Depois de pouco tempo, fomos embora procurando outra festa, mas não antes de seu primo ter me chamado para sair contra a vontade da esposa (por que será que ele chamou justamente a mim?), pois haviam brigado. A nuvem negra atrai maldade. Numa tentativa frustrada de demonstrar bom senso, pedi a ela que dirigisse, apenas para tentar tomar o volante de volta em seguida. A tratei como não se deve nem a um animal, a agredi verbal e fisicamente, fazendo jus a como me sentia, um monstro que tinha de impor dor aos outros, talvez até para afastá-los da minha própria, que nessa época, ainda era apenas quase insuportável.
Não sei, honestamente, se o que fiz será perdoado de fato, pois não sinto que o fui (isso não está ao meu alcance), nem se terei o que acho justo. O que sei, é que chegou ao fim um relacionamento de cinco anos que certamente ficará marcado por todo o sempre, porque esse é meu desejo. Sofri uma dor que não desejo ao condenado no corredor da morte, um arrependimento profundo em relação ao que minhas escolhas levaram. Mas o que um cego, um tolo ignorante poderia fazer? Essa dor foi apenas uma de muitas que ainda viriam. Um dos grandes problemas que as drogas trazem é que as pessoas que abrem mão do dependente químico sofrem por um tempo e depois “resolvem” seus sentimentos em relação a ele, mas o seu sofrimento (o dele) continua, até que algo mude. Para mostrar isso, tomo emprestadas as palavras de um texto bem conhecido meu: “(...) um adicto [aqui entenderemos como dependente químico, mais à frente explico em detalhes] que não queira parar de usar não vai parar de usar. Pode ser analisado, aconselhado, persuadido, pode se rezar por ele, pode ser ameaçado, surrado ou trancado, mas não irá parar até que queira parar de usar”. Então refaço a pergunta: o que poderia fazer, já que não tinha consciência espiritual dessa opção?
                No mês de maio desse mesmo ano, meu pai, aos oitenta e nove anos, com a saúde extremamente debilitada, é internado na UTI do hospital ITACOR. Um dia antes de sua ida, sofreu mais uma de diversas quedas. Eu estava usando drogas no quintal de minha casa e ouvi de lá o som causado por isso, o que me fez sentir uma raiva extrema, já que tinha que parar de usar para ir lá ajudar. Por isso, diversas vezes desejei que ele morresse logo, aí eu teria tranquilidade pra usar quando quisesse. Não me arrependo de expor isso, porque a pessoa que quis isso, essa pessoa, não mais vive entre nós. Mas chegando ao   quarto, meu sentimento mudou – ainda havia esperança pra mim, ainda havia algo de bom dentro de meu ser. O pus na cama e vi que já não tinha mais lucidez, mesmo assim dei um beijo em sua testa, ele olhou pra mim surpreso e sorrindo, como se agradecesse pelo gesto de carinho. Nunca vou esquecer aquele momento. Depois desse breve instante, disse a ele em um tom surpreendentemente amável: “pai, o senhor deve ir pro hospital”. Ele respondeu: “eu vou, eu vou”. Foi a última vez que falei com meu pai.
                No dia doze de abril de 2009, após quase um mês de internação, por volta das 20h, o telefone tocou. Um gigante havia tombado.
                Tudo o que sou hoje, se tenho destreza com o conhecimento e habilidade com o escrever, dentre muitas outras coisas, herdei de meu pai. Um homem de extremo e notório saber, que discorria com impressionante propriedade sobre qualquer tema exposto a ele. Admirador da chuva, adorava ir para a varanda e ficar apenas olhando, tranquilamente e quase sempre em silêncio, a água que caía dos céus.
No dia após sua morte, estava usando drogas novamente.
                O meu uso estava tão frequente e tão intenso, que virou um ciclo vicioso: acordava depois de vários dias de autodestruição, arrependido, amargurado, sentindo um vazio enlouquecedor que precisava ser preenchido por mais drogas. Fazendo-me de vítima, tratava prontamente de fazer o que fazia muito bem: criar discórdia e dor em casa, apenas para justificar meu uso novamente, para alimentar minha raiva. Aí entra mais uma personagem nesse drama, mas não menos importante: minha mãe, que foi praticamente a única a restar na guerra desigual, desleal e injusta que as drogas proporcionam. Ela passou a ser meu principal alvo de ódio, e tudo girava em torno dela. Brigas por causa de dinheiro, discursões violentas e tentativas frustradas de me fazer mudar reinavam naquela casa, regado a muito uso. Eu pressentia que algo estava pra mudar, ou mesmo buscava isso.
                Resolvi me entregar de completo a meu estilo de vida: abandonei o emprego, a faculdade, ficava ligando para minha ex-namorada em auto piedade apenas para alimentar mais e mais a minha dor, e a dela. Os últimos amigos me abandonaram, me dizendo coisas muito fortes. Andava na maior parte do tempo entre favelas e motéis para usar lá, sempre sozinho.
                Pela primeira vez, senti que precisava de um tempo. Ouvi falar de um local que oferecia tratamento a dependentes químicos, e resolvi que queria ir para lá. Depois de um mês de espera, mas relutando muito, dei entrada em minha primeira internação.
                Não me adaptei ao lugar, e apenas dezoito dias depois, não aguentei e pedi desesperadamente para ir embora, alegando que “tinha aprendido a lição”, uma completa desonestidade, porque no fundo, queria mesmo era voltar a usar. Mas essa internação não foi em vão, pois conheci o programa que abriria meus olhos no futuro.
                Saí, e não demorei muito tempo limpo (uma nova expressão que aprendi lá). Aprendi também que eu tinha doença incurável, progressiva e com fins fatais se não for tratada (sim, é uma doença comportamental e se chama adicção; do latim, adictum, escravo, no contexto, escravo de si mesmo), mas apenas saber disso é pouquíssimo frente a dimensão que essa doença alcança. Haviam me contado que a adicção é como uma vela: quando estamos na ativa, acendemos a vela, se entramos em recuperação, apenas apagamos a vela, não ganhamos uma nova. E eu pude confirmar isso na prática.
                Não durei dois meses de pé. E obviamente, meu uso voltou mais intenso do que nunca, e minha doença avançou a um novo patamar: onde antes minha busca por destruição almejava minha casa, agora se expandia para toda minha família. Não havia hora para ligar para algum tio, avó ou qualquer outro para pedir dinheiro contando histórias mais absurdas possíveis. Não conseguindo com eles, ia pedir fiado a traficantes, o que passou a ser um sério problema, porque dever a traficante é um dos caminhos mais rápidos para a morte no mundo da adicção. Então, os denunciava à polícia para que fossem presos e não tivessem como me cobrar. Isso é um perigo maior ainda, porque não há perdão para delatores nesse mundo...
                Já tive arma apontada na cara por causa desses deslizes, mas meu coração nem mesmo acelerou nem tremi um pouco sequer, não por coragem, mas por minha vida já não ter valor nenhum para mim. Acredito que um fim a ela era inclusive o que buscava, pois não tinha coragem de acabar assim com minha própria “vida”. Meus olhos viram gente ser morta bem na minha frente por causa de dez reais. Meus olhos viram meninas de treze anos se prostituindo e tendo que dar o dinheiro a gigolô, sob ameaça de espancamento. Sempre que conseguia o carro de minha casa, o deixava empenhado em bocas-de-fumo, sempre com minha mãe indo buscar. Houve vezes que ela tomou o carro expulsando os traficantes de dentro dele, e houve vez que em empenhei o carro de meu tio, outro que não pode deixar de ser citado pelo apoio dado.
                Não lembro com exatidão da cronologia dos fatos dessa época. Posso apenas afirmar que a certa altura dos eventos, me sentia como se fosse uma nuvem negra, que tinha como único propósito destruir tudo o que me cercasse, e que, de fato, precisava de um fim. Com a polícia cada vez mais em meu encalço, devendo dezenas de traficantes, ameaçado de morte, com a família desistindo de mim, sem amigos, sem amor próprio, quebrado física, mental e espiritualmente, sem vida. Qualquer que fosse o desfecho, eu o queria. Mesmo hoje, tenho dificuldade de recordar o que exatamente aconteceu. O que sei com toda certeza, é que no dia 2 de fevereiro de 2010, fui forçado e levado a outra cidade em um outro estado para dar entrada em minha segunda internação. Quando hoje me perguntam se eu queria ir, respondo que eu sabia que precisava, mas minha doença não queria.
                Nesse dia terminava uma vida.
                E chorei me despedindo dela.

“Non est maior defectum quan ignoratio” Parte II


UM POUCO DE MIM
(Leia antes a parte I  deste texto postada abaixo) 

Frederico Burlamaqui
(fredkareka@hotmail.com)
                Minha lembrança mais antiga é de minha cidade natal e morávamos em um condomínio. Creio que tinha por volta de três anos de idade. Curiosamente, não é uma boa lembrança: é medo, na verdade. Mas não detalharei isso, com seu perdão (já falei sobre isso a outros). Tive uma infância alegre: era uma criança inteligente e curiosa, gostava de brincar e descobrir coisas novas, e havia momentos que gostava de ficar sozinho (é importante citar isso). Tinha um irmão mais velho e nos dávamos bem.
                Mudamos de cidade quando tinha por volta de quatro anos de idade, pois minha mãe queria ficar perto de minha avó, sentia saudade de sua terra-mãe e de sua família. A residência de minha avó foi nosso lar por um tempo, porque a casa que meus pais compraram estava em reforma para nos receber. Sempre muita gente, e talvez por isso, havia certa severidade no ambiente, mas também a sensação de acolhimento.
                Fui crescendo e conhecendo colegas vizinhos, brincávamos muito e adorava tudo aquilo – a infância, em minha opinião, é a fase mais gostosa da vida. Descobria cada vez mais que o mundo é grande, muito maior do que achava. Guardo nomes de diversos amigos o que me deixa até nostálgico, aliás, escrevendo sobre essas coisas, me sinto assim há um tempo.
                Chegou a fase do colégio e mais descobertas: novos colegas, algumas paixõezinhas (sem menospreza-las), “algumas” artes (aprontava muito!), decepções, alegrias, enfim, nenhuma queixa de que poderia ter aproveitado mais, acredito que foi na medida certa, com exceção das surras que levava de minha mãe, o que me deixava absurdamente triste e com raiva.
                Aos nove anos de idade, sendo bem curioso, tomei meu primeiro gole de álcool. Foi uma sensação nova, mas passei mal, e meus pais brigaram bastante. Hoje em dia, adiantando um pouco o raciocínio, sei que foi também uma maneira de me vingar das surras que levava.
                Na adolescência, as coisas foram mudando, quando conheci novas companhias, o que foi “bom” por bastante tempo. Digo isso porque eu gostava de estar com eles, mas para ter sua aprovação, bebia e depois de um tempo, parti para outras drogas. Era pura curtição: festas, namoradas, bebidas e outras drogas, como inalantes e maconha. Hoje, definimos isso como fase de “namoro” com as drogas. Sou capaz de contar histórias até engraçadas dessa época.
Conheci minha primeira namorada nessa época, meu primeiro amor, aos quinze anos. Já consumia álcool com regularidade e maconha com certa frequência, mas ainda não considerava parar, porque, na minha concepção, não me atrapalhava. Além disso, conseguia convencer minha amada de não havia problema naquilo, aliás, uma característica marcante dos dependentes químicos – a capacidade de manipular, ou de pelo menos querer. Discorrerei em detalhes sobre isso no momento certo.
Refletindo sobre minha adolescência para a fase adulta, vejo hoje que as drogas, incluindo o álcool, nunca estiveram dissociadas de minha vida, depois que os conheci. Absolutamente tudo o que fazia tinha que ter alguma ligação com esses companheiros do passado, inclusive meus sentimentos, ações e decisões. Posso citar diversos exemplos: se ia viajar, tinha que ser à praia, “porque praia, cerveja e maconha, foram feitos um pro outro”; se fosse convidado pra uma festa, era lógico que ia por que tinha bebida, com um tempinho pra “fazer a cabeça” com um baseado; adorava uma Rave , porque ecstasy  e LSD é em enorme quantidade;   se fosse meu aniversário, tinha que ser em um sítio porque na minha família só tinha “careta”; se quem eu conhecia não bebesse e não usasse nada, não podia ser meu amigo. Defendia categoricamente que a maconha deveria ser legalizada no Brasil, o que inclusive, foi o tema da redação que me pôs na Universidade. Mentia, ou seja, era desonesto com os outros, e principalmente comigo mesmo. Fazia-me de vítima, afirmando que as pessoas, ou melhor, o mundo estava errado a meu respeito, e sentia raiva delas por não aceita-las nem compreende-las. Raiva, aliás, era minha amiga íntima, mas sem separá-la de seus companheiros: a falta de aceitação, a ilusão, o remorso, a tristeza, a inveja, a dor, o enorme vazio, a completa solidão, mesmo cercado de pessoas. Conhecendo-me, você pode até achar que é exagero, mas é a mais pura verdade, acredite, tive bastante tempo para aprender que era isso.
Conheci na faculdade a pessoa que me fez acreditar em amor à primeira vista. Isso passou a ser minha prioridade nessa época, eu tinha que tê-la para mim. Era tão desonesto, que sinceramente, nem me ocorreu por um momento sequer, ter consideração e tentar manter meu então atual namoro. Mas lógico, ainda queria sair com ela às vezes, só para mantê-la sob meu controle (sempre desonesto).
Confusos e complexos, mas não mais incompreensíveis são meus sentimentos sobre essa época. Sem dúvida a amava, mas não sabia como lidar com isso, por mais simples que pareça. Não incluo o amor na lista dos sentimentos a que me refiro no caput desse texto. O amor, na verdade, é o sentimento mais simples, mas não menos forte que existe, em minha opinião. A queria comigo por toda minha vida, de verdade, mas o conflito, hoje sei, estava dentro de mim. Enganei, não tive aceitação muito menos sabedoria. Menti, manipulei, traí, até mais do que se pode pensar, mas hoje sei que não foi por minha culpa diretamente, como explicarei mais adiante.
Se escrevesse aqui tudo o que fiz de mal não só ao grande amor de minha vida até agora, mas a todos que me cercavam, sem dúvida daria muita coisa, mas já fiz isso, não é minha intenção aqui relacionar danos, mas de reforçar minha atual condição espiritual de vida. Além disso, os problemas nem são o mais importante: é o que se faz em relação a eles. Quero, portanto, demonstrar as causas e como as trabalhei para chegar onde estou hoje, se quiser tentar, mas lhe previno: não é em absoluto, fácil. Nem ao menos difícil, é complexo.

“Non est maior defectum quan ignoratio” Parte I

Leitores deste Blog,

Tive ontem a felicidade de reencontrar bem um companheiro de tratamento que, na ocasião, abandonou-o apenas com 18 dias. Depois de recaídas e sofrimentos, ele partiu para um novo tratamento e está limpo há aproximadamente um ano e oito meses. Que bom.
Falei do meu blog para ele e recebi posteriormente um e-mail dele falando do blog e me mandando este texto para que eu o postasse.  O texto é muito bom e um pouco grande, por isto, irei postá-lo por partes.

Boa Leitura.


        Non est maior defectum quan ignoratio” 
        “não há maior defeito que a ignorância”.


Frederico Burlamaqui
(fredkareka@hotmail.com)

                Palavras nem de longe são capazes de demonstrar ou descrever todos os sentimentos. Às vezes, há uma complexidade tamanha que nem quem sente sabe dizer ao certo o que é, muito menos de mensurar a vastidão e o alcance do sentimento. Alguns, menos acostumados a tais situações enlouquecem, ou se entregam a uma vida sem sentido, de autodestruição. Outros passam a ser indivíduos de extrema baixa autoestima, por pensar que são diferentes dos demais, que são incapazes ou fracos. Há os que com boa sorte, conseguem ajuda e a aceitando, descobrem pelo menos como lidar com esses sentimentos.
                Mas há os inconformados. Aqueles que aceitam desafios e são gratos pelo que lhes acontece, que na verdade, sorriem de tudo isso. Aqueles que nem têm noção do tamanho do gigante que devem enfrentar, mas que buscam sabedoria e a melhor maneira de resolver o que sentem, mesmo quando precisam de alguém especificamente nessa jornada homérica – e essa pessoa não quer ajudar nem ser ajudada.

O PORQUÊ DE TUDO ISSO
                Todos têm problemas, dificuldades. Mas há os que têm uma maior inabilidade de lidar com o mundo exterior a si, e muito maior quando se trata do seu próprio interior. Um caos, uma eterna tempestade irrompe constantemente consumindo tudo o que há de bom dentro de si mesmo, dirimindo valores, já distorcidos, e principalmente, a esperança de que um dia tudo isso acabe. Infelizmente, é um número assombroso de pessoas assim. Acredito, pessoalmente, que é a maioria das pessoas. Afirmo isso porque é comum ouvir que ”o melhor é esquecer o que passou”, ou ter uma postura de “eu te perdoo, mas não quero ver você nunca mais”, como se isso fosse resolver algo dentro de si (não resolve). De fato, a psicologia, Freud especificamente, mostra que tudo o que nos acontece vai pra algum lugar dentro de nós, mesmo imperativamente – não controlamos isso. De alguma maneira, vai refletir no nosso comportamento e na maneira que pensamos e encaramos as coisas. Quer seja através de irritabilidade, intolerância, egoísmo, ou mesmo, de falta de amor próprio, dentre infinitos outros.
Alguns evitam falar de si, ou dos sentimentos guardados ou “esquecidos”, na ilusão de que vai se resolver de alguma forma, e não percebem que isso é o mesmo que caminhar para o precipício. Outro erro comum é o cometido pelos que até tentam mudanças, mas erram o foco, buscando realização profissional e financeira, se afundando em trabalho e estudos (em excesso). No campo afetivo, quando há uma grande dor envolvida, buscam o caminho da raiva e da incompreensão, e partem para mais um busca pela “pessoa certa”, ou de ficar sozinho, na esperança de esquecer o que aconteceu e a pessoa causadora da mágoa desapareça dos pensamentos.
Há os casos mais complexos, dos que recorrem a extremos na tentativa de fugir de “nem-sei-o-que-mesmo”, por não entender o que se sente, e encontram nas drogas seu refúgio – e aqui peço licença para falar um pouco de mim (já que é de quem o texto trata, ou pensou que era de você?).